TRÁGICA ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA EM CABINDA

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No início de 2019, em especial nos dias 31 de Janeiro e 1 de Fevereiro, a pressão subiu com protestos nas ruas de Cabinda e o Governo Provincial de Cabinda ordenou a detenção de pelo menos 77 activistas sociais. O direito de reunião e de manifestação foi simplesmente ignorado. Há evidências de que João Lourenço (JLo) não está interessado em resolver a Questão de Cabinda.

Por José Marcos Mavungo (*)

Em Janeiro e início de Fevereiro de 2019, por ocasião da celebração dos 134 nos do Tratado de Simulambuco, a cidade de Cabinda ficou mais uma vez marcada por uma onda de detenções. Coisas que pensávamos não poderem mais realizar-se neste momento em que o Presidente da República JLo diz estar apostado em “ melhorar o que está bem e corrigir o que está mal”, verificaram-se perto de nós, em nossas casas, nas nossas famílias, dentro de nós. Cabinda tornou-se um pesadelo nestes últimos dois meses, com uma legião de forças de segurança dispersa por toda a parte à caça de bruxas.

Na segunda-feira, 28 de Janeiro, as forças de segurança do regime «en place» lançaram uma «campanha» de buscas e apreensões contra dirigentes do Movimento Independentista de Cabinda (MIC) e todos aqueles que, eventualmente, viessem a participar na manifestação programada para 1 de Fevereiro, contrariando assim o direito de reunião e de manifestação, previsto no artigo 47º da nova Constituição da República de Angola. A campanha prossegue por um período indeterminado, talvez até vésperas das próximas eleições autárquicas.

Desde o lançamento da campanha, o quotidiano em Cabinda está marcado por revistas, buscas e detenções permanentes, a última detenção foi a do Engº Sabastião Macaia Bungo, Secretário para a Informação do MIC, no dia 12 do corrente. Pelo menos 77 activistas sociais e políticos já foram detidos de forma arbitrária e programática, sem que tivessem sido apanhados em flagrante delito.

Até prova do contrário não houve qualquer confronto físico e gratuito com a Polícia, e nada consta que houvesse algo de errado por parte dos activistas sociais que mostraram vontade de participar da manifestação. Porém, muitos cidadãos foram selvagemente espancados por dois agentes da Polícia, alegadamente do SIC, um dos quais identificado apenas como Beto, residente no bairro de São Pedro.

Na sequência destes espancamentos, a activista Maria Deca teria ficado com a cara inchada, e Alberto Puna Buzi Cibi estaria com uma grande dor das costelas que dificultariam a sua marcha e o impediriam de dormir. Teria dificuldade em encontrar uma posição em que pudesse deitar-se sem que as dores o violentassem. Além disso, diz que há sangue nas suas fezes.

Como nos tempos de José Eduardo dos Santos, os arguidos estão colocados em prisão preventiva e foram indiciados por alegada prática dos crimes de associação criminosa, rebelião, ultraje ao Estado, arruído e resistência. O julgamento sumário contra o independentismo em Cabinda poderá ser para breve. Entretanto, em Angola, andam à solta os grandes tubarões do regime que teceram a corrupção e grandes garrotes impiedosos (por exemplo, o 27 de Maio de 1977, os autores morais do assassinato de Cassule e Alves Kamulingue) que a sociedade angolana conheceu nestes anos de independência, acabando por deixar órfãos, viúvas e reduzir 70% da população a uma pobreza abjecta.

Em Cabinda, a sociedade está a viver muito mal esta situação e está exausta de viver um ciclo de governação e de administração da justiça iníquo – período de um figurino sociopolítico e jurídico escaldante, mortífero, de abusos de poder, de criminalização das manifestações, de fracasso económico, de grave exclusão social, de negação dos direitos que ligam os Cabindas à sua terra.

Neste momento, muitos estão concentrados em saber a quantos anos os acusados serão condenados. Parece-me que a questão fundamental devendo atravessar as nossas consciências não é saber se o Tribunal da Comarca de Cabinda vai fazer um julgamento justo e imparcial, mas que os instintos políticos e militares subjugaram a razão jurídica do sistema judiciário angolano ao admitir o caso como um crime – e isto confirmado por vários casos similares no mundo, como por exemplo, a posição dos juízes da Alemanha, Bélgica, Escócia e Suíça ao terem de examinar os pedidos de extradição, feitos pela Espanha, que reivindicava os políticos catalães que se exilaram nestes países.

Por todas estas razões, ainda que venham a ser absolvidos ou condenados com sentenças curtas, já houve prevaricação, usando fraudulentamente as instituições de administração da justiça para amedrontar e ameaçar cidadãos, pelo simples facto de reclamarem um direito que os liga à sua terra.

Portanto, há evidências de que o Executivo angolano não assume um carácter suficientemente voluntarista no sentido de encontrar saída para os problemas explicativos das manifestações em Cabinda, entre os quais o agravamento da vida social (mesmo para uma simples dor de dente, deve-se estender a mão aos dois Congos) e a própria questão de Cabinda; trata antes de reforçar as restrições para o contexto envolvente, aceitando-as como um dado adquirido e procurando a melhor adaptação.

A estratégia de JLo inscreve-se na lógica das actuações políticas destes últimos 43 anos: não pôr em causa o legado de uma descolonização desastrosa e apertar o cerco aos espíritos irreverentes, reformadores, que não param de criticar, questionar o actual figurino sociopolítico, económico jurídico caracterizado por um feroz despotismo feudal e por uma estranha destruição e empobrecimento de Cabinda.

JLo esquece-se que os efeitos perversos de detenções arbitrárias e julgamentos injustos de pacifistas excedem, na maior parte dos casos, os efeitos da própria guerra, contradizem a razão de ser das penas infligidas aos supostos arguidos, as quais visam evitar violência e conflitos armados.

A propósito da Questão de Cabinda, o móbil da manifestação programada para 1 de Fevereiro de 2019, devemos recordar que as declarações dos governantes angolanos sobre a necessidade duma solução pacífica deste diferendo entre Cabinda e Angola já vêm desde a acessão de Angola à independência, e têm uma listagem longa. Mas podemos socorrer-nos de algumas.

Por exemplo, a 16 de Fevereiro de 1976, Agostinho Neto assume o compromisso de solucionar o problema de Cabinda pela via do diálogo. No aeroporto de Cabinda terá declarado: «Não vamos aguçar as lanças uns contra os outros. Não precisamos de fazer a guerra por causa deste problema». Prometeu criar comissões bilaterais, dialogar… nada mais fez senão matar, violar e deportar!

Além de vamos conversar! – de Fevereiro de 1991, o presidente José Eduardo dos Santos considerou, em Fevereiro de 2002, que Cabinda seria também “uma questão a tratar no âmbito da reforma constitucional”. Assim será possível “saber o que é que os angolanos todos querem, qual a sua opinião sobre Cabinda. “Trata-se de uma consulta popular dirigida a todos os angolanos”, afirmou o Presidente angolano. Acresce que o Presidente de Angola prometeu aos Cabindas, em Setembro de 1992, negociações destinadas a determinar se Cabinda é ou não Angola.

Já passaram 43 anos, e o diálogo tão propalado pelo regime não passa de simples oportunismo, manobra de diversão ou manipulação, uma mobilização para se fazer ouvir.

O Executivo angolano, em vez de gerir politicamente o problema, levou-o à justiça, e agora estamos aqui: a sofrer um julgamento político que não dignifica o Estado de Direito Democrático que Angola deveria ser.

Penso que JLo não deve continuar a esconder o sol com a peneira e, dessa forma, ampliando uma má imagem de Angola. É necessário um referendo de autodeterminação vinculativo para Cabinda, um projecto tão legítimo como qualquer outro (por exemplo, o caso do Saara Ocidental), embora ponha o Estado angolano histérico, um Estado multinacional erguido sobre os escombros de uma descolonização desastrosa e duma ditadura afro-estalinista que não foi expurgada nestes últimos 43 anos.

(*) Activista dos Direitos Humanos

Fonte: Jornal Folha 8

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