“TENHO DÚVIDAS QUE O PRESIDENTE TERÁ CORAGEM DE EXIGIR O REPATRIAMENTO DE CAPITAIS A GOVERNANTES”

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Para o economista não são precisas fórmulas mágicas mas sim de estímulos ao sector produtivo para que se consiga a eficiência e os trabalhadores além de motivados possam estar aliados aos objectivos nacionais

Na entrevista que concedeu ao Jornal de Economia & Finanças, F ilomeno Vieira Lopes, ao seu jeito, abordou sem “filtros” nem “vassouras” temas da actualidade nacional com foco nos desafios económicos que o país enfrenta ou ao menos terá de enfrentar nos próximos tempos. Valendo-se da sua condição de investigador social, o também docente universitário e membro do Centro de estudos e de Investigação Científica da Universidade Católica de Angola, reconheceu alguns avanços em determinados sectores com realce às medidas recentes do banco central que introduziu o câmbio flutuante para controlar e ajustar a variação da taxa (in)formal.

Até que ponto a moratória dada pelo PR para o repatriamento de capitais é um assunto sério para quem está nesta posição? Acredita que o dinheiro que está no estrangeiro virá ou não?

É sempre difícil em Angola aquilatar a seriedade de qualquer medida política, sobretudo quando visa a classe dominante, pois esta, por costume, não se submete à Lei nem à Norma. Fá-la em cada acto concreto discricionário da sua acção pública. O prazo está expirado e dada a tradição governamental de falta de transparência ainda não se sabe de alguém que tenha efectivamente repatriado o seu capital. Assim, em coerência, o Governo pode agir judicialmente. Vamos ver se tem coragem de manter a sua palavra ou se adere à filosofia do “etumudietu” do porta-voz do MPLA, pois este partido é que tem jogado o verdadeiro papel de Tribunal nas trafulhas dos seus membros. Espero para ver, sabendo bem que o “capital” não tem pátria, saltita em função da taxa de lucro e o pessoal que delapidou o país é profundamente desumano.

Angola é ainda o país rico de população extremamente pobre. Será que os ricos ou endinheirados só estão do lado de quem sempre governou?

É praticamente isto. O sistema num primeiro passo nacionalizou tudo e, num passo a seguir, entregou a propriedade, por ajuste directo, aos seus correligionários. São poucos os que pela sua capacidade empreendedora chegam ao escalão da “riqueza”. Mesmo estes tiveram que se submeter à integração partidária para mostrarem que eram indefectíveis e que sua riqueza não iria beneficiar sectores fora dos seus círculos. Todo o capital financeiro está dominado pela cadeia partidária, o que dificulta o financiamento de pessoas estranhas ao circuito. O regime é rigorosamente partidarizado e o dinheiro é uma feroz arma política de discriminação. Sabe-se que o partido
no poder seleccionou na dita mudança para a chamada “liberalização” 100 famílias suas para criarem impérios privados e, com isto, financiarem também a actividade partidária. Perceberam logo de início que para manter o poder político, deveriam controlar à unha o poder económico. Com este comportamento, Angola é um dos países do mundo em que a diferença entre ricos e pobres é astronómica.

Mia Couto faz num texto uma diferenciação de ricos e endinheirados. Em Angola, o que temos: ricos ou endinheirados?

Mais endinheirados que ricos. Estes, como defende Mia Couto, investem no sector produtivo, criam empregos, contribuem para a riqueza nacional melhorando o nível de vida das famílias. Cumprem regras, pagam impostos, permitindo que o Estado invista em infraestruturas, saneamento, saúde, educação, etc. A nossa “classe” não só tem o Estado como sorvedouro como tem milhões acumulados em bancos estrangeiros, adulam o dinheiro e, desde há pelo menos duas décadas, que fazem grandes festas quando as suas contas bancárias atingem os “100 milhões de dólares”. Para eles não há fronteiras entre a propriedade social e a propriedade pessoal. O seu dinheiro é macho e não se reproduz. 

A classe dominante é sôfrega de dólares, de divisas, por isto encalha-se no “import-export”, nos serviços bancários, e elimina tudo o que é visão produtiva

Acha que somos pouco produtivos? Se sim, tendo em conta o potencial em recursos naturais, quais deveriam ser as nossas apostas neste campo?

O nosso modelo geral é da administração dos recursos naturais, sobretudo o petrolífero. As tentativas de produção por nós próprios têm falhado. A estratégia de 20 anos após os contratos a empresa nacional assumir os activos e operar, falhou no essencial. As empresas operadoras angolanas subcontratam outras, mantendo a tradição administrativista. Não pomos a mão no ferro. Com os recursos naturais que temos, a primazia seria dominar a tecnologia afim e explorar. Segundo, seria financiar toda a cadeia produtiva alimentada pelas matérias-primas que possuímos para termos mais-valias com a sua transformação. A classe dominante é sôfrega de dólares, de divisas, por isto encalha-se no “import-export”, nos serviços bancários e elimina tudo o que é visão produtiva, incluindo na agricultura, com raras excepções.

Que caminhos devíamos seguir para melhor distribuirmos a riqueza de Angola?

A primeira questão da distribuição está no investimento em bens públicos, aqueles que todos podem beneficiar de forma equitativa: Insfraestruturas sociais, saneamento, boas redes viárias, escolas, hospitais, comunicação aberta e desenvolvimento de capital humano e social, coisas que o Estado deve prover. O segundo aspecto é assegurar emprego para todos para que tenham uma fonte de rendimento honesta e sustentável, o que implica a alteração da actual Lei trabalhista e uma visão empenhada de apoio à criação de empregos. O terceiro é assegurar a distribuição da riqueza social de forma equitativa, via re-afectação dos impostos, permitindo o melhor equilíbrio. Mas tudo isto só se consegue com a alteração radical do nosso sistema de governação que teria que se basear em ouvir os cidadãos que imporiam a afectação dos rendimentos ali onde são indispensáveis e não na acumulação primitiva de capital de certos entes. Só com participação popular se conseguirá distribuir melhor a riqueza nacional.

Onde residem as suas maiores preocupações no actual OGE?

Em primeiro lugar, no facto de não assentar num Programa de Governo e na violação à lei, permitindo que o Executivo altere programas em plena execução sem consentimento sequer do Parlamento. Depois,o facto da Assembleia autorizar praticamente tudo ao Governo, inclusive a definição dos impostos. A falta de cálculo no orçamento, fazendo que cada despesa corresponda efectivamente a um projecto ou uma actividade concreta é alarmante. E, não sendo o menos importante, a desproporção na distribuição das verbas, ficando o sector social muito abaixo do necessário e o sector de segurança sempre alavancado.

A questão da distribuição dos rendimentos divide as opiniões de especialistas. No seu entender, Luanda é também a província mais privilegiada no OGE, defende que “a luandização da economia”, como alguém defendeu, tem contribuído negativamente para a melhoria de vida em geral?

O país tem sérias assimetrias regionais. Isto impede o desenvolvimento. A única forma de fazer país é desinvestir em Luanda proporcionando às restantes regiões a capacidades de explorar as suas potencialidades. O investimento que implica uma forte atracção por Luanda prejudica até a qualidade de vida da capital. Mas Luanda é também dominante porque o centro do poder está aqui e este detém também as quantias a aplicar no resto do país. A concentração de poder e dinheiro em Luanda mostram a falta de visão da classe dominante, o seu embrutecimento e a sua hipocrisia quando afirma que quer combater a pobreza, dominante no meio rural.

O problema desse país é não “saber” alocar o dinheiro ali onde ele deve ser alocado e permitir que a corrupção grasse em toda a esfera do estado

Claramente que um dos problemas que existe e já sublinhado pelo PR é o do baixo salário da função pública. Que magia para que o salário mínimo nacional seja compatível ao nível de vida?

Não se trata de magia alguma. O problema desse país é não “saber” alocar o dinheiro ali onde ele deve ser alocado e permitir que a corrupção grasse em toda a esfera do Estado. Os salários baixos só complicam. É como comprar um frigorífico e não ter recursos para adquirir electricidade. Degrada-se e não cumpre a sua função. Os baixos salários comprometem a economia porque a procura é baixa e o sector produtivo não é estimulado a produzir. Baixos salários não só alimentam a chamada corrupção de baixa intensidade, degradando os padrões éticos, mas também não motiva os trabalhadores e no caso da função pública torna o sector ineficiente, o que impacta negativamente no sector económico nacional pelas dificuldades artificiais que são causadas. O salário mínimo não tem muita volta a dar. Cada cidadão tem que ter o mínimo indispensável para viver e educar os seus filhos. Conhecemos o cabaz, atribua-se o dinheiro. Minimize-se a corrupção e os abonos para o “grupinho”, faça-se boa gestão e tudo acontece.

O que seria recomendável para superarmos a perda do poder de compra?

Reduzir o nível de inflação e aumentar os salários mais baixos. A quem tenha rendimentos cujo impacto no seu poder de compra é reduzidíssimo ou nulo.

Até que ponto o combate à venda informal de divisas terá impacto num curto e médio prazo com as medidas da banda cambial do BNA? Esta estabilidade passa mesmo pela taxa flutuante?

A taxa flutuante estabelece um mercado local de câmbios e encontra a taxa de mercado que permite recuperar o valor real da produção no sector externo, como bem explica o economista José Cerqueira. A repressão só por si do mercado paralelo de divisas e as medidas administrativas do câmbio fixo não combatem de forma duradoura a taxa de câmbio do mercado paralelo. Mas por causa das consequências nefastas da taxa de câmbio flutuante, a banda introduz um factor de prudência para evitar uma rápida degradação da moeda. Mas isto pode esconder a falta de confiança das autoridades monetárias na via escolhida para equilibrar a balança comercial com impactos simultâneos no combate ao défice interno.

Em tempos, ao Jornal de Economia & Finanças perspectivou uma hiperinflação. Diante da realidade económica actual acredita mais nas soluções da equipa económica ou mantém esta posição?

A inflação está aí e vai aumentar. Não sei se há o controlo efectivo da massa monetária em circulação, ficamos sempre  surpreendidos com notícias de descobertas de contentores de dinheiro fora do circuito bancário.

Devemos mesmo neste momento de aperto financeiro optar por novos e mais impostos?

Um imposto que faz falta restabelecer é o valor de um dólar por cada barril de petróleo exportado. Também o Estado não precisa de aumentar a comissão de gestão da Sonangol para as áreas de concessão de sete para 10 por cento. Nesses dois itens seriam arrecadados muitos biliões de kwanzas. Mas os cidadãos com salários médios e baixos não podem suportar mais impostos que afectem o seu rendimento disponível, pois, ademais, não há contrapartidas de serviços públicos gratuitos e eficientes. Pelo contrário, as taxas de energia e água aumentaram, quando estes sectores trabalham com ineficiência e desperdício (incluindo gastos supérfluos para as chefias) factores que deveriam
ser atacados a sério.

O programa intercalar apressa-se para o seu fim. Já podemos falar de resultados para a economia nacional por via deste desafio, e em relação ao PEM acha ser um oportuno programa para completar o primeiro?

Apesar do seu termo ser no final de Março não há resultados visíveis. Houve aplicação de certas medidas, não todas, houve a aplicação de alguns instrumentos, mas a grande maioria dos resultados esperados resultam por enquanto no seu oposto. É preciso primeiro afirmar que o Plano não determina metas precisas como o montante do aumento da produção, o nível de desemprego a combater, o nível de inflação a ser estabelecido. Por consequência, não há na realidade um Plano macroeconómico, porque não tem variáveis-objectivas quantificadas. Agora, são estabelecidas muitas metas qualitativas, um conjunto de instrumentos diversificados cuja consistência fica difícil avaliar e bastante medidas administrativas e programáticas, tipo refazer o país. É assim questionável se conseguimos a “estabilidade macroeconómica” preconizada, o “clima para a retoma do crescimento económico e a geração de emprego”, a “mitigação dos problemas dos sectores mais vulneráveis”, que certamente agravou, bem como se aprofundaram as assimetrias sociais e a pobreza. Estas pretensões ademais não se reflectem no OGE (já analisamos atrás a concentração do poder e do dinheiro em Luanda e o agravamento programado da pobreza), assim como este instrumento contraria as medidas de redução da despesa pública como por exemplo redução em 30 por cento dos bens e serviços e em 50 dos subsídios de utilidade pública. Tudo isto aumentou no OGE. Também ainda não está elaborado o Plano fiscal de médio prazo, uma peça importante na confiança entre o Estado e os parceiros económicos e sociais. É claro que estas peças – Plano Intercalar e Plano Macroeconómico – ficam ambas a meio caminho dum verdadeiro Programa Anual do Governo que não existe e dificulta a orientação da Política Económica.

O problema para nós é que a nossa crise não vai acabar com alguma folga de divisas no circuito público

O barril de brent a 80 dólares ainda em 2018. Acredita que o preço venha nos surpreender pela positiva, tendo os receios aventados de que a crise do preço fosse quase que perene?

Segundo algumas previsões optimistas, sobretudo da Goldman Sachs, o preço do barril poderá ascender a 75 dólares até o final de Março e seis meses depois poderá estar acima dos 85. O preço do barril é muito sensível há muitas variáveis conjunturais, como, por exemplo, as toneladas lançadas ao mar do petróleo dirigido à China, como a recusa da Flórida em reabrir poços por razões ecológicas e o incremento da acção militar. A diminuição da procura internacional dos EUA tem sido determinante na queda do preço petrolífero e sabe-se que, de momento, os seus stocks estão a subir e o Presidente Trump ordenou a reabertura de mais poços de petróleo. Estes factores não impactam por aí o aumento do preço, mas a contracção da oferta da OPEP e Rússia e a procura em outras zonas favorece o aumento. O que é mesmo certo é a volatilidade do preço. A China já produz gás com o método do fracking e pode também utilizar a médio prazo esta técnica para explorar mais petróleo internamente, diminuindo a sua procura internacional e pressionando a baixa do preço. Mas, por outro lado, a luta ecológica pode aumentar nos EUA e haverá assim pressão para o aumento do preço, mas os esforços de diversificação do cabaz energético, com a energia nuclear a ficar mais barata, pode novamente inverter a tendência para a diminuição do preço. O problema para nós é que a nossa crise não vai acabar com alguma folga de divisas no circuito público. Estas têm o efeito perverso de encobrir a verdadeira crise e, portanto, o aumento do preço de petróleo longe de ser uma boa notícia é realmente má face aos vícios acumulados.

A diversificação é a panaceia para o crescimento e dispersão económica, subindo o petróleo, como vai acontecendo, teme que esta aposta possa ser relegada uma vez mais para um plano secundário?

Claramente, pelo menos com a actual classe política, como disse, num contexto de aumento dos preços do petróleo não haverá diversificação económica alguma. O que acontecerá são chorudos gastos em despesas correntes como carros, mobílias de luxo, bom champanhe, viagens etc, ou seja, boa vida, contra despesas em investimento produtivo e feitas com critérios de gestão, ao invés de fingir financiar investimentos só para aumentar o capital de influência de certas pessoas e no sector externo ir pela via fácil (para ir buscar comissões) com obras “chave na mão” sem aprendizado, nem utilização de recursos internos. Não está terminada ainda a acumulação primitiva do capital. Há nas hostes governamentais uma mentalidade de “novo rico”, que se torna cultural, uma apetência à corrupção que é já psicológica e isto impõe limites à adopção duma política económica sã e rigorosa, sobretudo quando os rendimentos são provenientes da exploração dum recurso não renovável. A má gestão do petróleo conduz implacavelmente à desindustrialização. É uma indústria extractiva que corrói a competitividade externa de outros produtos exportáveis por via da taxa de câmbio que tende a estar valorizada e assim poder servir os interesses consumistas do grupo minoritário que tem tudo nas mãos. O mercado produtivo interno mirra e a diversificação não ocorre.

Temos um sector educativo que precisa de maior investimento. Há quem diga que este actua como papagaio, ou seja, o rigor científico é posto em causa. No caso da formação de economistas, estamos no bom caminho? Nesta altura, precisamos mais de contabilistas ou macro economistas? Porquê?

O que precisamos, sobretudo, é de técnicos e cientistas capazes e com formação ética à altura dos grandes desafios de Angola. Angola precisa de muita massa cinzenta, de formar muita gente em todos os sectores que ajudem a inverter a lógica do serviço público e da governação. O problema não é meramente técnico. É sobretudo político, mas a capacidade técnica associada à ética não só chama a atenção para o descalabro como serão as palancas do desenvolvimento amanhã. A primeira grande ruptura a fazer no modelo educacional no país é, entretanto, claramente no sector pré e primário. Isto é que seria estruturante porque garantiria desde logo um padrão de sustentabilidade da formação do capital humano de qualidade para o país. O OGE continua a ser desencorajante desse ponto de vista, porque a primária não é vitrina só que é o pilar de facto, onde tudo começa. A visão governamental, nessa matéria, assemelha-se a do futebol que para dar visibilidade ao país se aposta, sem sucesso, entretanto, nos escalões de cima quando o trabalho e o grande investimento deveria começar cá em baixo. Não há coragem! Assim como, na mesma esteira, é preciso dar visibilidade a existência dum Presidente e de uma Assembleia Nacional e, por isso, não há investimentos na construção do poder autárquico onde os interessados na política fariam o seu aprendizado e o povo o mesmo exercício, participando em assuntos do seu domínio. Nota-se que por detrás de uma política há sempre um fio condutor.

Perfil

Nome: Francisco Filomeno Vieira Lopes

Idade: 63

Formação: Economista

Ocupação: Reformado da Sonangol

Trajectória: Iniciou a trabalhar aos 16 anos na Casa do Pessoal da Imprensa Nacional de Angola. Aos 20 anos, foi perito contabilista da Inspecção Geral de Créditos e Seguros. Desempenhou ainda a função de Revisor Oficial de Contas em Portugal. Assumiu cargos de Direcção na Sonangol. Foi eleito Administrador, sem nunca ter tomado posse.

Outras relevantes: Fundador de grupos e partidos políticos e associativos. Em 1989, a Associação Cívica de Angola (ACA). Demitiu-se de cargos de direcção do MPLA em 1975.

Fonte: Economia & Finanças

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