O REFINAMENTO DOS REGIMES AUTORITÁRIOS NÃO É SÓ COISA DE AFRICANOS

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O estereótipo de regimes africanos consistia na figura do ditador (strong man) com seu círculo de políticos clientes aduladores, que usurpavam o poder através de golpes de estado, violência eleitoral, intimidações dos opositores, que iam até ao assassinato e sequestro de jornalistas e activistas de direitos civis.

ESTA IMAGEM está fora de moda, pertence cada vez mais ao passado, embora por vezes, reapareçam os velhos demónios seculares com um rastro de violência. Os exemplos mais grotescos que serviram até à exaustão as páginas dos jornais, foram Idi Amin Dada do Uganda e Macias Obiang, da Guiné Equatorial, que presidiram ditaduras sangrentas e grotescas com todos os elementos de “bestialidade”.

No grande clube de líderes autoritários que mantém um controle ferrenho sobre o poder, seja através da pantomina de eleições com carimbos de borracha, alterando leis para estender mandatos, ou reprimindo as oposições, figuram membros selectos desta grande igreja com vários púlpitos e fiéis de várias cores e latitudes.

É claro que os presidentes africanos não estão sozinhos na lista. Que tal falarmos de Lee Kuan Yew, o fundador de Singapura, que erigiu um estado rico e exemplar aos olhos da comunidade internacional fazendo desaparecer milhares de opositores e que se manteve por mais de três décadas; e Hun Sem, do Cambodja, com mais de trinta anos, e de Nursulaltan Nazarbavev, no Cazaquistão, que está no poder desde o colapso da União Soviética.

A América Latina, um continente pródigo em ditaduras clássicas no século passado, mantém no poder na esteira de Fidel de Castro, um partido sem alternância desde Janeiro de 1959, experiência que determina a presença de Nicolas Maduro aos destinos da Venezuela.

Vários presidentes africanos exerceram o poder por mais de 20 anos, e três deles ultrapassaram os 30 anos. O presidente da Guiné Equatorial, Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, tomou o poder ao seu tio em 1979, o mesmo ano em que José Eduardo dos Santos subiu ao poder. Yoweri Musoveni, continua no poder através de eleições marcadas por falta de transparência.

Além do crescente número de líderes que passam o poder pacificamente após o acto leitoral, também houve casos de reacção pública contra líderes que tentaram prolongar o seu mandato, como Frederck Chiluba da Zâmbia e Bakili Muluzi, do Malawi. Em 2014, a tentativa de Blaises Campaoré de estender a presidência de 27 anos no Burkina Faso foi frustrada por uma revolta popular violenta que o leva ao abandono do país, enquanto que no Burundi, a agitação política continua, ainda que tenha sido bem sucedida a tentativa de Pierre Nkurunziza, de prolongar o seu mandato presidencial.

Alguns políticos africanos apontam o mal das raízes do autoritarismo para os seus “mestres coloniais” e as escolhas que fizeram ao seleccionar governantes para sucedê-los após a independência. Que a África que findou com os “grandes homens“ na State House, não seria totalmente alheia a este legado colonial, disse Nenjamin Nkapa, da Tanzânia.

Quando perguntaram se as elições estariam a dar má reputação à democracia, o ex-secretário geral das Nações Unidas, Kofi Annan disse: “ A democracia não é apenas um dia a cada quatro ou cinco anos quando as eleições são realizadas para um governo que respeita a separação de poderes. Liberdades como as de pensamento, religião, expressão, associação, reunião e o estado de direito…Qualquer regime que passe por cima desses princípios, perde a sua legitimidade democrática, independentemente de ter ganho inicialmente uma eleição”.

MEXER NOS INSTERSTÍCIOS DA “RULE OF LAW”

Os estereótipos dos regimes autoritários africanos modificaram-se nos últimos anos deixando para trás a figura bruta do ditador que usurpava o poder através da violência eleitoral, intimidações e fraude grosseira nas urnas.

Os regimes africanos refinaram-se (aliás como em todo o mundo) manipulando habilmente a moldura política, silenciando dissidentes e opositores de forma insidiosa que vai até à corrupção, e limitando as liberdades cívicas. A fórmula “rule of law” foi substituída (viciosamente) pela “rule by law”, com perigosas consequências para o desgaste da democracia.

Esta prática, subtil, subverte os textos jurídicos que vão ao encontro do interesse público, mas na sua aplicação alvejam os opositores de forma selectiva, tolhendo os seus movimentos, e condicionando as suas actuações, socorrendo-se de um articulado legal.

Estas leis servem na maior parte dos casos para alerta a polícia na véspera de manifestações populares, para que as forças da ordem as possam condicionar invocando argumentos de segurança pública. Para falarmos de um exemplo: no Uganda, quando os opositores de Museweni, informaram a polícia da sua intenção de realizar protestos em Kampala, de acordo com a lei em vigor, a polícia concordou, mas restringiu as manifestações de protesto para os arredores da capital, lá onde a sua presença seria inócua e desapercebida dos eleitores e da imprensa internacional.

Esta prática, seguida pela maior parte dos países africanos, conta com uma logística jurídica de uma nova elite formada nas melhores universidades internacionais, e com uma polícia anti-motins, especialmente formada para gerir conflitos e manifestações urbanas, que dispõem, para além do treino, uma vasta panóplia de equipamento de dissuasão semi-letal.

Mas, apesar de tudo, a cultura democrática progride em vastos espaços do continente africano, e, é só desafiada abertamente pelos terroristas islâmicos que tentam impor a conquista do poder através de um feroz fanatismo religioso, que se estende da Nigéria até à Somália, descendo para sul na costa do Índico.

Com avanços e recuos, a democracia é sempre melhor que uma guerra. Mas os países democráticos africanos têm de saber defender esses valores em todas as frentes, longe das vertigens revolucionárias do passado recente.

Fonte: África 21 | João Seles

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