CAMPO DA MORTE: CASO N.º 4: “SÃO GATUNOS E MERECERAM MORRER”

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VÍTIMAS: Mendik Pedro Samuel “Kabila”, 22 anos, natural do Uíge; Inácio Fernando Romão, 21 anos, natural de Luanda

DATA: 20 de Abril de 2017

LOCAL: bairro Malueca, município de Cacuaco

OCORRÊNCIA:

Mendik Pedro Samuel “Kabila” residia em Caxito, província do Bengo, e deslocava-se regularmente a Luanda para visitar os pais e irmãos no bairro Malueca, município de Cacuaco, e, em particular, a mulher e a filha, residentes no bairro do Golf. Em 20 de Abril passado, visitou primeiro os pais, dirigindo-se depois ao Golf, em companhia do amigo Inácio Fernando Romão, ao encontro da esposa e da filha, junto de quem jantou.

Os pais e irmãos falaram com Kabila pela última vez depois do jantar, quando este telefonou ao irmão (Guilherme Pedro Samuel “Gui”) para saber da veracidade de uma mensagem que entretanto recebera de fonte não especificada. Segundo essa falsa mensagem, o irmão Matondo, de 18 anos, fora capturado.

A família explica que, tal como tem acontecido com outros jovens por todo o bairro, o adolescente “está a ser procurado pela DNIC [SIC], para ser abatido”. Em 2014, Matondo estivera detido duas vezes, num total de seis dias, por suspeita de furto.

Por volta das 4h00, uma vendedeira de pão viu dois corpos a serem despejados de uma viatura minivan JinBei (pintada de azul e branco) por dois indivíduos. Os corpos foram atirados na lama, num beco ao lado de uma padaria, no desvio de Malueca. A vendedeira alertou a vizinhança.

A família de Kabila acorreu ao local e deparou-se com o seu cadáver e o de Inácio, identificando sinais de que tinham estado amarrados e haviam sido torturados. Gui notou que o seu irmão Kabila tinha sido injectado com um líquido no braço esquerdo, que provocara bolhas na pele.

De acordo com Eva Paulina, mãe de Kabila, um dos três investigadores do SIC presentes no local informou-a apenas de que os defuntos “são gatunos e mereceram morrer”.

Por sua vez, o pai de Inácio, Fernando Romão, conta que os três investigadores lhe pediram que os acompanhasse até ao quintal da padaria, para anotarem os dados de identificação do seu filho e da família. “Um deles tirou a mochila das costas, tirou de lá um caderno de apontamentos e tirou também fotografias. Mostrou-mas e disse-me: ‘Esses [jovens] são perigosos, um deles estava fugido, mas já está a ser procurado e faltam esses [para serem eliminados].’”

“Vi também as fotografias do Inácio e do Kabila [enquanto vivos] e perguntei porquê”, prossegue Fernando Romão. “Eles responderam-me que eram da investigação criminal e perguntaram-me se eu queria julgá-los ou se eram eles quem tinha o direito e o poder de julgar.”

“Então, perguntei-lhes se tinham sido eles a matar o meu filho e o amigo Kabila. Responderam-me que eu estava a acusar a autoridade e estava estressado. Disseram-me que a polícia não mata. Prende e entrega ao Ministério Público”, acrescenta.

Fernando Romão viu dez fotos e afirma que “esses que faltam [para serem eliminados]” são oito. “Então fiquei a saber que foram eles [elementos do SIC] que mataram o meu filho e o seu amigo. Entreguei-lhe os dados que me pediram, meteram o caderno e as fotografias na mochila e saímos do quintal”, conclui.

Conceição Pedro Samuel, irmã de Kabila, sublinha que três agentes do SIC, afectos à Esquadra do Alfa-5, foram depois a casa da namorada do irmão mais novo de Kabila (Luís Pedro Samuel “Matondo”), dizendo-lhe: “Já matámos o teu cunhado, só falta o teu namorado.”

Dois dias mais tarde, quando foram à morgue para levantar os cadáveres e realizar o funeral, os familiares passaram por novo episódio envolvendo o SIC. Eva Paulina recorda a troca de palavras que tiveram com o médico legista porque o SIC havia registado no seu relatório de remoção de cadáveres que os jovens foram mortos a tiro. O médico exigia dos familiares explicações sobre aquela inverdade oficial.

Por sua vez, “os homens do SIC, lá na morgue, perguntaram de que é que o meu filho morreu? Respondi-lhes que quem sabia já estava morto [o filho] e que eu não tinha presenciado o homicídio. Então, insistiram que eu, como pai, sabia por que o meu filho morreu”, relata Fernando Romão.

Os investigadores informaram ainda o pai de Inácio sobre o conteúdo do relatório que traziam consigo, no qual o filho e o amigo eram descritos como delinquentes.

Por ter defendido que o filho era bem-educado e “limpo” enquanto cidadão, os agentes acusaram Fernando Romão de irrealismo. O pai explica que Inácio esteve de facto detido durante um ano (foi libertado em Junho de 2016), por suspeita de furto, mas que o suposto crime nunca foi devidamente explicado à família nem esclarecido perante ninguém.

“Um dia, a polícia e a DNIC [SIC] apareceram-me aqui em casa com o meu filho algemado e muito torturado, todo ensanguentado. Nem sequer conseguia abrir os olhos, de tão inflamados que estavam. Perguntei-lhes qual era o crime e disseram-me que ele foi apanhado a fazer um assalto mas não podiam revelar mais nada, porque era segredo de justiça. Fiquei sem saber o que tinha sido assaltado”, recorda. E acrescenta que o seu filho foi denunciado por um desconhecido que havia sido bastante torturado e obrigado a indicar alguém.

Conceição Pedro Samuel, irmã de Kabila, conta ter sido detida nesse mesmo dia pelos mesmos agentes do SIC, às 4h00 da madrugada, sem contudo se lembrar da data: “Eu estava em casa havia dois dias, depois de ter passado três semanas no Hospital do Cajueiro, onde o meu filho de sete meses esteve internado. O Inácio, depois de levar tanta porrada que lhe abriram a cabeça, deu o nome do meu irmão Kabila. Como não o encontraram, deram-me bofetadas e levaram-me a mim e ao meu bebé.”

“Levaram-me a casa da minha irmã, onde os polícias roubaram o plasma [televisor], a botija de gás e o computador do cunhado dela. Ficaram a girar comigo o dia todo, passei também pela Divisão do Rangel e depois abandonaram-me distante de casa”, acrescenta Conceição Pedro Samuel.

Já no Comando de Divisão do distrito urbano do Rangel, onde Inácio havia sido torturado, os agentes solicitaram ao pai que comprasse medicamentos para salvar a vida do filho, que entretanto perdera os movimentos nas mãos devido à tortura. “Arranjei o enfermeiro que o observou e, durante 15 dias, fui à esquadra todos os dias para lhe fazer massagens até ele recuperar os movimentos. Depois de ele melhorar, foi julgado e condenado.”

“Perguntei ao juiz por que o condenou a um ano de prisão? Não havia provas, testemunhas, nem mesmo a polícia que o prendeu. No MPLA não há nada disso, provas. Isso era no tempo colonial”, lamenta.

Entretanto, entre 2015 e 2016, Kabila passou mais de um ano em prisão preventiva, na comarca de Viana. Na altura, segundo a família, foi detido por um colaborador do SIC (ligado às Esquadras do Bom Pastor, Alfa-5 e Asa Branca). “Esse Francisco [o referido colaborador] queria a motorizada do meu irmão, que estava devidamente legalizada, e passou a usá-la como sua”, denuncia a irmã.

“O meu irmão foi condenado pelo Tribunal Municipal de Cacuaco sem que tivesse aparecido um único queixoso, nem mesmo a polícia a informar sobre o crime que ele tinha cometido. Obrigaram-nos a pagar 150 mil kwanzas de caução e mais 30 mil kwanzas ao homem que o foi tirar da cela”, prossegue.

Quatro dias antes, de acordo com depoimentos da família, um vizinho, devidamente identificado como colaborador do SIC e conhecido apenas por Big, entregou um número de telefone a Gui, irmão de Kabila, para que este último lhe telefonasse mas a partir de um telefone estranho. “O Kabila ligou do número dele e quatro dias depois estava morto. O Big deixou de circular na vizinhança”, afirma Eva Paulina.

 

Fonte: «O campo da morte – Relatório sobre execuções sumárias em Luanda, 2016/2017», Rafael Marques de Morais