CAMPO DA MORTE: A INTRODUÇÃO

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Ponto prévio: A Rádio Angola vai divulgar os 50 casos de execuções extra-judiciais em Luanda levadas a cabo por um «Esquadrão da Morte» que constam do relatório «O campo da morte», que denuncia assassinatos que decorreram entre 2016 e 2017, recém publicado pelo jornalista e activista Rafael Marques de Morais. Como ponto de partida, publicamos primeiramente a introdução do relatório para melhor entendimento do que aborda a investigação.

INTRODUÇÃO

Os 50 casos de execuções sumárias reportados neste relatório ocorreram entre Abril de 2016 e Novembro de 2017, sobretudo nos municípios de Cacuaco e Viana, os mais populosos de Luanda. Cerca de metade da população da capital do país, estimada em sete milhões de habitantes, vive nesses dois municípios. Trata-se de uma pequena amostra ilustrativa de uma actividade metódica e sistemática que afecta muitas outras centenas de vítimas: o assassinato, por parte de operacionais do Serviço de Investigação Criminal (SIC) — dirigido pelo comissário Eugénio Pedro Alexandre —, de jovens tidos como delinquentes ou simplesmente indesejados. Não se trata de casos esporádicos, mas sim de um mecanismo de exterminação montado pelo SIC, com a colaboração de alguns cidadãos, os quais indicam, através de listas ou apenas verbalmente, os jovens a serem abatidos, sem qualquer procedimento de investigação. A título de exemplo, o jovem Abega (ver Caso n.º 18) foi confundido com um outro, de nome Drogba, um presumível delinquente. Foi levado para as traseiras de um autocarro e atingido com dois tiros, um no olho esquerdo e outro nas costas. Acreditando que ele estava morto, os polícias abandonaram-no, mas Abega sobreviveu para contar a sua história. Depois de, em Abril de 2017, termos reportado e partilhado todos os casos em nossa posse, recolhidos à data, com o ministro do Interior, Ângelo de Barros Veiga Tavares, verificou-se um longo período de acalmia, que coincidiu também com a campanha eleitoral e o primeiro mês pós-eleitoral. Depois das eleições de 23 de Agosto e da tomada de posse do novo presidente a 26 de Setembro, a 30 de Setembro, porém, os agentes do SIC voltaram às campanhas de assassinatos. Para além de Cacuaco e Viana — os dois municípios sobre os quais incide o nosso levantamento de casos — também no município do Cazenga ocorreram incontáveis assassinatos. Alguns casos constam da lista descritiva do relatório e, pelo seu carácter inaugural e paradigmático, este município merece lugar de destaque na introdução.

Na realidade, a comuna do Kikolo, onde ocorreu grande parte dos assassinatos, era até recentemente parte do município de Cacuaco, mas foi dividida administrativamente para fins eleitoralistas. Grande parte do seu território passou a estar sob jurisdição do Cazenga. Cacuaco tornou-se o principal bastião eleitoral da oposição. A anexação de grande parte do Kikolo (o foco maior da UNITA) ao Cazenga, onde o partido no poder — o MPLA — domina, facilita a correcção da assimetria eleitoral a favor do MPLA. No relatório, mantemos o Kikolo como parte integral de Cacuaco, porque grande parte da população local, e não só, ignora a mudança administrativa. Nos casos onde o comando municipal da Polícia Nacional no Cazenga tem jurisdição operacional, fazemos a devida referência.

O primeiro caso de retorno pós-eleitoral à campanha de execuções sumárias, devidamente identificado, ocorreu precisamente no Cazenga. Por volta das três da madrugada de 30 de Setembro de 2017, os jovens Milton e Lami-Py dirigiam-se a casa, no bairro da Mabor, vindos de uma festa na Casa Dubai, no bairro Hoji-Ya-Henda, quando foram apanhados na perseguição de dois supostos delinquentes, um dos quais conhecido por Jó do Boy, por operacionais do SIC. Segundo testemunhas oculares, os quatro agentes estavam devidamente identificados com coletes do SIC, e faziam a perseguição a pé, enquanto outros dois seguiam num Toyota Land-Cruiser branco de vidros fumados. António Domingos Miguel, pai de Milton, narra o sucedido através dos depoimentos recolhidos junto dos vizinhos e outras testemunhas oculares. A 28 de Setembro, na cidade de Malanje, onde ambos viviam, Milton informara-o de que visitaria a mãe em Luanda naquele fim-de-semana. E assim fez.

“A 50 metros de casa, os jovens foram surpreendidos pelo SIC. Os vizinhos que escutaram pela janela disseram-me que o meu filho ainda conversou com os homens do SIC. Explicou-lhes que vivia em Malanje, tinha terminado o curso de electrónica.” Durante a conversa, um dos agentes fez um disparo para o chão e, segundo dois jovens que assistiam, a bala atingiu a perna esquerda de Milton, que logo gritou por socorro. Uma vizinha abriu a porta para atestar o bom carácter dos jovens. “Os rapazes imploraram, disseram que nunca foram bandidos. Os homens do SIC ainda consultaram as suas listas de alvos a abater, mas um deles fez logo um disparo que atingiu Milton no peito. O meu filho morreu na estrada”, conta o pai. Por sua vez, Lameth, ao ver o amigo tombado, encetou a fuga aos gritos de socorro. Tentou entrar em casa da vizinha, que, em vão, alertou os perseguidores de que os jovens eram “bons” filhos do bairro. “Cala a boca e fecha a porta, se não queres morrer”, ameaçou um dos agentes, segundo depoimentos recolhidos no local. Lameth fugiu por um beco sem saída, o mesmo por onde seguira Jó do Boy. Escondeu-se na casa de banho (separada da casa) de uma vizinha. “Fuzilaram-no na casa de banho, à queima-roupa, com um tiro do lado direito da cabeça e outro da testa, no canto onde estava de cócoras. Deixaram-no aí”, relata um dos vizinhos. “O meu vizinho Bebucho, que assistiu a tudo, foi quem apanhou o Jó do Boy na fuga. Os agentes algemaram-nos a ambos e ali mesmo perguntou ao Bebucho se este os tinha visto a matarem os seus amigos. Libertaram-no”, conta o pai de Milton. Acto contínuo, os agentes conduziram Jó do Boy à esquadra policial do Hoji-ya-Henda. Os corpos dos malogrados foram recolhidos pelo SIC, por volta das cinco da manhã, sem qualquer perícia legal. O comandante Quintas, dirigiu-se ao local do crime para se inteirar do caso e, diante de vários residentes, disse apenas: “Mais um mau trabalho.” “O Jó do Boy foi morto nessa mesma noite pelo SIC, e o seu corpo depositado directamente na morgue. Os familiares foram ter com o meu vizinho, que explicou apenas tê-lo agarrado. Um agente teve pena da família e, a 2 de Outubro, informou-os de que o Jó do Boy fora morto no mesmo dia e que o seu corpo se encontrava na morgue, entre os não identificados”, refere António Domingos Miguel. É assim que, tipicamente, estes “esquadrões da morte” operam. Organizados em grupos armados com beneplácito oficial, procedem a assassinatos selectivos extrajudiciais com finalidades específicas.

Fonte: «O campo da morte – Relatório sobre execuções sumárias em Luanda, 2016/2017», Rafael Marques de Morais