ALBERTO OLIVEIRA PINTO: “NÃO HÁ UMA VERDADE ÚNICA SOBRE O 27 DE MAIO”

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Autor de uma já vasta obra sobre história e cultura angolanas, da qual avulta a “História de Angola: da Pré-História ao Início do Século XXI”, Alberto de Oliveira Pinto, doutor em História, traz-nos uma visão do 27 de Maio de 1977, à luz da História. Entre outros tópicos, fala do papel de Agostinho Neto nos acontecimentos daquele fatídico ano

Vós, historiadores angolanos, tendes a maturidade, serenidade e isenção suficientes para narrar a verdade do 27
de Maio de 1977?

Em História, é sempre mais difícil abordar factos da História recente. O 27 de Maio de 1977 não tem ainda meio século. Por isso, para mim, é recente ou mesmo contemporâneo. Penso, no entanto, que ao mesmo tempo – parece paradoxal, mas não é – se há uma necessidade em apurar a verdade – ou as verdades – há que deixar falar as pessoas que a viveram e que ainda se encontram vivas. Eu não vivi o 27 de Maio. Tinha 15 anos na época, mas já vivia em Portugal. O 27 de Maio, ao tempo, chegoume apenas pelos meios de comunicação social portugueses e por alguns familiares que andavam entre Angola e Portugal. Mais tarde, vim a conhecer pessoalmente, em Portugal, muita gente que o viveu e que me transmitiu diversíssimas visões. Houve um período, nos anos de 1994 e 1995, em que realizei no CIDAC (Centro de Informação e Documentação Amílcar Cabral), em Lisboa, uma investigação que se restringiu a ler de ponta a ponta as edições do Jornal de Angola de então, nomeadamente, os discursos de Agostinho Neto e os editoriais de Fernando Costa Andrade (Ndunduma Uelépi). Acabei por não fazer nenhum trabalho a partir dessa investigação e a minha especialidade, como historiador, virou-se, sobretudo, para a história do discurso colonial e para a história cultural angolana. Entre 2012 e 2016, escrevi a “História de Angola”, cuja 3ª edição foi publicada em Lisboa, no passado dia 15. Nela dedico sete páginas ao 27 de Maio. Procurei sintetizar tudo o que recebi de informações de testemunhas, um bocadinho da minha incompleta investigação dos anos de 1990 e, sobretudo, do que apurei com os trabalhos de dois historiadores indubitavelmente autorizados: a infelizmente já falecida Dalila Cabrita Mateus e o meu amigo Jean-Michel Mabeko-Tali, que, além de ser um historiador meticuloso e honestíssimo, é também ele uma testemunha do 27 de Maio, pois vivia em Luanda na época. Foi com orgulho que traduzi para português e posfaciei a versão ampliada do seu livro Guerrilhas e Lutas Sociais. O MPLA perante si próprio. 1960-1977, cuja 2ª edição vai ser lançada em Lisboa, no próximo dia 29.

E já agora, qual é a verdade do 27 de Maio de 1977, à luz da História?

Aí encontramo-nos perante outro paradoxo aparente na actividade de um historiador. Embora eu entenda que um historiador deva pugnar pela verdade, doa a quem doer, nunca se pode dizer que haja uma verdade única. As perspectivas dos homens são sempre diferentes e é isso que dignifica a História e as demais ciências sociais. O  importante é que sejamos intelectualmente honestos e prestemos atenção a todas as fontes.

Há consenso, entre os historiadores, sobre a natureza das ocorrências do 27 de Maio de 1977? Foi uma tentativa de golpe de Estado? Um levantamento popular?

Evidentemente que, pelo que acabei de afirmar, não pode haver consenso entre os historiadores. Do meu ponto de vista, houve uma tentativa de golpe de Estado a 27 de Maio de 1977. Quando se ocupa uma estação de rádio e um quartel e se exalta o povo a sair à rua e a marchar até ao Palácio presidencial, estamos perante o quê? Tal, porém, de modo algum justifica a repressão sangrenta que se seguiu.

Há uma dificuldade tremenda em encontrar interlocutores que, à época, estavam em posição de poder. Na sua opinião a que se deverá isso?

O motivo só pode residir no facto de, efectivamente, terem sido praticados crimes na repressão à tentativa de golpe de Estado a 27 de Maio. No entanto, compreendo que certas pessoas não queiram falar e tenham esse direito.

Qual é a explicação para tanta violência, tanta intolerância, associadas ao 27 de Maio?

Não vejo qualquer explicação para a violência e para a intolerância, seja em que circunstância for. Há coisas que, para mim, não têm nunca qualquer justificação, nomeadamente, a violência física e a corrupção.

O MPLA/Estado em 1977 estava envolto num conflito intestino e ao mesmo tempo tinha poderosos inimigos externos, a si e ao país. Como é que o MPLA/Estado se conseguiu manter de pé, num cenário de aparente fragilidade?

Precisamente pelo que acabou de dizer: conseguindo tornar-se um partido-Estado, mantendo-se como tal até hoje e sabendo habilmente adaptar-se às conjunturas históricas internacionais. Ao tempo, estava-se em plena Guerra Fria, também chamada conflito Leste-Oeste. Quer queiramos, quer não, com maiores ou menores divergências, mesmo entre Cuba e a União Soviética, o certo é que o MPLA saiu vitorioso, conseguindo o apoio do Bloco Leste. Penso, no entanto, que o Ocidente também tem qualquer coisa a dizer, porquanto os EUA e os países europeus ocidentais, como a França, nunca deixaram de ter capitais em Angola, no que diz respeito à produção petrolífera e diamantífera.

Algo de que se fala muito e de que se vai falar mais, certamente, é o papel de Agostinho Neto no quadro daqueles acontecimentos. Ele tinha como pôr um travão a tudo aquilo? Era possível?

Conheci pessoas não angolanas – inclusive que nunca estiveram em Angola – e muito isentas que conheceram pessoalmente Agostinho Neto na juventude e que me garantiram que ele não podia ser o autor dos discursos aterradores que proferiu. O certo, porém, acrescentavam, é que Agostinho Neto aceitou lê-los em público. Não sei se Agostinho Neto tinha como pôr um travão, mas, como Chefe de Estado, sem dúvida que teve a sua quota-parte de responsabilidade pelo que aconteceu. É certo que a liderança de Agostinho Neto dentro do partido desde 1962 – e Jean-Michel MabekoTali demonstra-o bem no seu livro Guerrilhas e Lutas Sociais. O MPLA perante si próprio. 1960-1977 – nunca favoreceu o debate de ideias, o que contribuiu muito para o desprestígio de Agostinho Neto depois do 27 de Maio. Inclusive, há quem ponha em causa a sua qualidade como poeta. A meu ver, é um dislate. A obra literária de Agostinho Neto e de outros autores seus contemporâneos é incontornável. Não sendo intocável – pois ninguém o é – , Agostinho Neto é, indubitavelmente, o primeiro chefe de Estado da Angola independente e isso é inalienável. Mais uma vez, segundo a análise de Jean Michel Mabeko-Tali, um dos erros cometidos por Nito Alves foi precisamente o facto de ter projectado um golpe de Estado mantendo a cabeça do Estado, ou seja, Agostinho Neto.

Acha que faz sentido estar a discutir hoje quem tinha ou não tinha razão?

Ir à procura de quem tinha ou não razão, do meu ponto de vista, não faz o menor sentido. A História não é um tribunal e, por isso, a meu ver, não há nunca, em História, quem tenha ou não razão. Faz sentido, isso sim, é compreender os tempos e as conjunturas, sem nunca silenciar as memórias, esconder ou escamotear o que quer que seja. Debater sempre, enfim. Isso aplica-se a todos os factos históricos, mesmo àqueles que têm séculos ou milénios.

O Presidente da República, João Lourenço, criou por decreto uma comissão para estudar e propor o tipo de homenagem às vítimas dos vários conflitos políticos de 1975 a 2002. O que acha dessa medida?

Acho uma medida acertada. As homenagens são sempre lugares de memória e um Chefe de Estado deve preservar as memórias do seu povo.

Quando escreveu a sua “História de Angola” teve dificuldade em abordar os acontecimentos relacionados com o 27 de Maio de 1977?

Nunca é fácil abordar a História. E as dificuldades que defrontei, já as mencionei. No entanto, penso que o que vale a pena referir é alguns dissabores por que passei, depois de publicar o livro. Por um lado, certos sectores ligados ao poder em Angola (que, evidentemente, não posso identificar aqui) censuraram-me por, alegadamente, ter mencionado um número “excessivo” de mortos no 27 de Maio. Na verdade, os números que apresentei são díspares, uns apresentados por Dalila Cabrita Mateus e outros por Jean-Michel Mabeko-Tali. Nas minhas 7 páginas, não fui muito além de pôr em confronto os dois historiadores, o que entendo perfeitamente plausível num trabalho como o meu livro “História de Angola”, que se pretende de carácter compendiador. Mas, por outro lado, alguns amigos em Portugal, defensores da ideia de que não houve qualquer conspiração nem qualquer golpe de Estado a 27 de Maio, passaram a olhar-me de soslaio, por eu manifestar essa perspectiva e inclusive por ter utilizado, mesmo entre aspas, a expressão “fraccionista”. Insisto na ideia de que, para um historiador, a verdade tem que ser sempre apurada, doa a quem doer. Mas é triste que o nosso trabalho, por vezes, acabe com algumas amizades. E o 27 de Maio é um excelente exemplo.

Fonte: Jornal de Angola | Isaquiel Cori

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